Gabriel Andrade. Still de Uma Encruzilhada Aprazível, 2006
Ruy Vasconcelos. Still de As Vilas Volantes, 2005
O que é feito com dinheiro público há que ter uma dimensão pública
-mesmo e principalmente sem perder arrojo na linguagem
i.
Migrando para o computador
O público médio de um filme documentário no Brasil é de 20.000 espectadores. Ou seja, a audiência de um documentário que, de fato, chega a ser distribuído nas salas de exibição de cinema. E, ainda aqui, em ponta de estoque: sessões de arte, salas de cinematecas, museus, centros culturais, etc. Partamos deste dado para pensar nas possibilidades democratizantes das chamadas novas mídias. Este blogue, por exemplo, desde setembro passado, quando instalamos um contador, já foi visto por mais de 18.000 pessoas. Estamos quase lá. E em apenas oito meses. Ora, é claro que isso aponta para o quanto as salas de cinema concentram um público extremamente exíguo entre os que vêem imagens hoje em dia no país do samba. Que esse público, que busca imagens, [digamos, aqui, mais propriamente as imagens de filmes], depois de haver passado pela experiência da televisão, conveniada ao breve interregno do vídeo-cassete, do dvd (como dispositivo autônomo, alâmbrico), e dos canais por assinatura, migra mais e mais para o computador.
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ii. Absolutamente necessário, esse toró
As câmeras digitais [pequenas, portáteis, baratas] e a edição não-linear [feita em sofwares como o Final Cut ou o Adobe Premier, num computador só um pouco mais robusto que o seu] facultaram o documentário a sabinos e cabanos. Embutida nessa vantagem do número também se implicita a desvantagem de confecção de uma vasta maioria um tanto "desajeitada" de realizações. Uma chuva torrencial e vertiginosa de novas imagens. E, no entanto, absolutamente necessário, esse toró. Pois ao menos de dentro do número podem emergir maiores possibilidades de algum esmero. Além desse número alavancar a indústria do audiovisual em Roraima, no Amapá ou em outros estados ainda mais distantes do tradicional "eixão" - que se tem roído de ciúmes por conta disso. Pois, claro, quem está acostumado ao filé-mignon e à exclusividade de um bom bordeaux, em termos de editais e verbas, se encontra muito pouco disposto a repartir, ainda que seja o pão de centeio, com os demais.
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iii. Uma divisão depropositada
É obtusa a pendenga, a propósito do montante de verbas para financiamento, via editais, que se quer criar entre as outras linguagens artísticas e as que envolvem o audiovisual. Está claro que, digamos, editar um livro é substancialmente mais barato do que pesquisar, roteirizar, orçar, produzir, gravar, editar (imagem e som) e finalizar um filme. Mesmo em vídeo e lançando mão de edição não-linear. No caso do filme, só para criá-lo, há que se pagar uma equipe. Profissionais que vivem disso: roteiristas, produtores, produtores de campo, diretores, assistentes de direção, diretores de fotografia, engenheiros de som, assistentes de câmera, diretores de arte, fotógrafos de still, pesquisadores, editores de imagem e de som, continuístas, atores, maquinistas, compositores de trilhas, músicos, figurantes... Além disso, há que se pensar na logística, no transporte, na acomodação, na alimentação desses profissionais, que, não raro, se deslocam até regiões distantes, por vezes exóticas - enfrentando desconfortos, isolamentos, precariedades, limitações de comunicação, diversão, contato, outros costumes e usanças, etc. - para a gravação de um filme. Para não falar no gasto com equipamentos: fitas de vídeo, aluguel de sets de iluminação, rebatedores, lentes, gravadores, microfones, gruas, steady-cams, direitos de imagem de arquivos, direitos autorais de fonogramas, latas de negativos... E, de resto, quantos e quantos livros estúpidos, mal redigidos, sem compromissos de pesquisa ou empenho histórico são lançados via editais públicos? Pior: até livros individuais de poesia [antologias de poesia, (em especial estrangeiras), traduções de qualquer gênero, ensaios (sobretudo históricos e do patrimônio coletivo) e romances a parte - pois estes, por razões distintas e estratégicas deveriam constituir prioridades] são lançados via editais públicos! O fato de haver maus filmes feitos com dinheiro público é apenas a contrapartida ou o "acidente" disso tudo. Mas nem sempre um mal. Um projeto é uma aposta, afinal. Um risco. Mas ao menos, no caso do audiovisual, um risco em que entra o trabalho coletivo de uma equipe, de um grupo. E, portanto, o risco é muito mais filtrado, mediado, avaliado por várias cabeças. Além disso, não se deve esquecer que o potencial de alcance e audiência, como no caso do bem desenhado programa Doctv, do Ministério da Cultura, é de milhões de pessoas no país inteiro. E assistindo documentários gravados em todos os estados brasileiros (aspecto dos mais relevantes). Aqui, de outro modo se pode, digamos, contrastar esse alcance com o dos 1.500 privilegiados (se tanto) que dispõem de dinheiro e educação formal elevada para comprar um livro de poemas. É um bom parâmetro de contraste. Note que, em termos de alcance, a razão vai de umas poucas centenas de leitores, geralmente concentrados nas capitais e nos grandes centros, detentores de altíssimos níveis de escolaridade formal, a milhões de espectadores, das extrações sociais as mais diversas, espalhados pelos quatro cantos & mais os cafundós dos cafundós do país. E melhor, que gente desses quatro cantos e desses cafundós esteja, pela primeira vez, tendo a possibilidade de "fazer" cinema e ver esse cinema feito por eles veiculado nos demais estados - inclusive no "eixão" - via televisão. A tarefa não é pequena. É uma espécie de anti-telenovela. E o país será melhor com essas anti-telenovelas sendo produzidas no Acre e no Piauí. E por gente do Acre, do Piauí. E quanto mais, melhor. A auto-estima é coletiva.
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iv. Sem suporte do circuito dos festivais mas com o empenho de uma grande equipe
De minha parte, fico feliz de os dois documentários mais autorais em que estive envolvido até aqui [As Vilas Volantes e Uma Encuzilhada Aprazível], ambos financiados mediante o programa Doctv, tenham sido vistos por milhões de pessoas em todos os estados da federação. E, mais, seguirem sendo reprisados em canais como a TV Sesc, a TV Cultura de São Paulo, e a TVE do Rio e as TV's educativas dos respectivos estados. E isso tudo, sem nem um nem outro haver entrado sistematicamente no circuito dos festivais, por pura e confessa negligência do Alexandre Veras e minha. [Ainda assim, recentemente, o Aprazível foi escolhido, por curadoria e espontaneamente, para uma mostra via Itaú Cultural, e apresentado em salas do Rio e Belo Horizonte; e As Vilas Volantes exibido no Festival de Cinema Brasileiro em Nova York, ao fim de 2008, por iniciativa dos coordenadores do Programa Doctv]. Mas, claro, boa parte do mérito de ambos os documentários, como peças de cinema em si, recai sobre uma equipe em que se encontra gente do conhecimento de causa de um Alexandre Veras, de um Ivo Lopes Araújo, de um Danilo Carvalho, de um Luiz Carlos Bizerril, de um Eudes Freitas, de um Gabriel Andrade, entre outros.
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v. Modelos e Filmar o Real
Também me move e toca - e toca forte - o fato de ambos os projetos terem sido tomados como modelos e exibidos nas oficinas do Doctv, para novos realizadores, em Brasília, nos respectivos anos consecutivos. E também que críticas idôneas, da envergadura de Consuelo Lins e de Claudia Mesquita [que passam ao largo de "tchurmas", "bairrismos", "picuinhas locais" e "guetos"], hajam destacado tanto As Vilas Volantes quanto Uma Encruzilhada Aprazível em seu instigante livro Filmar o Real (Jorge Zahar, Rio, 2008), que traça um propedêutico panorama do documentário brasileiro contemporâneo. Um dos mais importantes livros editados sobre o assunto recentemente neste país.
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vi. "Para expressar com mais sutileza o que penso"
Por fim, mas não menos importante, uma boa-nova: a Profª Agnés Clerc-Renaud, do Departamento de Etnologia da Universidade de Estrasburgo, me confessou recentemente que escreveu sua tese de doutorado em parte motivada pela leitura de um dos capítulos de minha dissertação de mestrado, As Vilas Volantes [1991]. O capítulo intitula-se "Louvores a Santa Adelaide" e trata, em largos rasgos, da religiosidade popular no distrito praieiro de Bitupitá [extremo oeste da costa cearense]. A Profª Clerc-Renaud empreendeu também uma bela tradução do capítulo para o francês, à qual intitulou "Louanges à Sainte Adélaïde". E, sobre o documentário homônimo [dirigido por Alexandre Veras em 2005], resultante desse primeiro esforço de pós-graduação, recebi da Profª Clerc-Renaud, anteontem, este generoso comentário:
"lamento que me falte o vocabulário na língua portuguesa para expressar com mais sutileza o que penso. Amei o filme pela "alma" desta região a qual me sinto profundamente ligada, que vocês conseguiram captar sem trair, pelo olhar terno sobre os personagens, pela restituição dum mundo poético a partir do verbo e da areia, pela radicalidade e singularidade do "parti pris" da filmagem que atinge ambas metas da arte e da sociologia. Agradeço por este presente e pelo curto encontro e espero ter outra oportunidade de conversar com mais tempo".
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vii. Exportar cultura
Isso está um tanto dentro do previsto. E gosto que seja assim. Me regozijo. É importante pensarmos em exportar cultura e não só mimetizar teorias e, em contrapartida, vender soja, carne, banana, minério-de-ferro, etanol ou acriticidade travestida de recepção... [aqui tanto quando se pensa em arte como quando se pensa em idéia - ou seja, naquilo que era para achar justo na academia o seu locus por excelência].
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viii. Revelar o invisível sem violar a visibilidade das coisas
Pego carona no ensejo para dizer: é superimportante estar a par de novas teorias sobre novas mídias e o uso que delas se pode fazer. Mas também para relembrar que há idéias tão boas que parecem soar quase insuperáveis. E, de resto, arte não é tecnologia - embora possa (e mesmo deva buscar) nutrir-se dela. Então, quando penso em imagem e combinada a som meu lema vem de uma tessitura das teorias de Bazin, Kracauer, Bresson, Ozu, Dreyer, Vigo, Cassavetes, Rohmer e Kiarostami. Parece muito. Mas não é. Pode ser expressa numa fórmula simples, que resumi assim: "o cinema revela o invisível sem violar a visibilidade das coisas".