John Ford, Three Bad Men, 1926
Angeologia Geral
α – Morrer não é como no cinema
“Tá vendo aquele?”, diz Fran e faz mira. A borracha da baladeira distende. No tronco do tamarineiro, o calango imóvel. Depois tirando rápidos, recorrentes meneios de cabeça, que só calangos. E logo imóvel outra vez, e para sempre:
“Esse vai também?”, diz Carlinhos.
“Vai”, resume Fran, e desprega os dedos.
Em prumo, a pedra varre o ar e acerta o réptil de perfil no tronco lenhoso – vertendo aqui, lá aquela resina castanho escuro dos tamarineiros. O calango cai. Aproximam-se.
O golpe fora um pouco abaixo do pescoço. O papo branco, escamoso, de onde o sangue deflui, tingindo as escaras. As patas a tatear no vazio, rápido, depois lento. O corpo sacudido por espasmos. As longas unhas – feito grifos – a dobrar como se à revelia. Contraem-se. O calango parece um pequeno dragão calcado por São Jorge e posto em efígie na moeda da lua cheia, como nas gravuras do Tesouro da Juventude. E, então, tudo parece um brusco movimento para dentro. Na direção do coração. Que vai cessando aos poucos. E o corpo rende-se no chão limoso. Distende-se, imprestável; sem o sopro da vida. Fran acende um cigarro:
“Em cheio”.
“É, morreu”, diz Carlinhos. E pensa que morrer assim não é como no cinema. No cinema, não. No cinema, morrer parece bom. Os tiros ressoam bonito. Os disparos ricocheteiam, ecoam. O corpo sai bolando pelos telhados, resvala em beirais e calhas, e cai em ruas poeirentas. Pôr-do-sol. Os cavalos não se assustam mais. Estão acostumados.
E, logo após, é outro filme: morre-se de novo; há outros saloons, telhados novinhos em folha, recém estradas poeirentas, os colts luzindo nos coldres, antes de serem sacados. A fleuma dos cavalos, que ou não se assustam ou, no máximo, dão um passo ao lado, para que o cadáver, após a queda acrobática, possa pousar com mais senso de proveito cênico, dentro de um cocho ou barril cheio d'água. Há muito mover-se no cinema, mesmo para moribundos.
Eles próprios, em suas brincadeiras e esportes, cansam de matar, morrer. Estar vivo ou morto é apenas uma circunstância. Plena, aliás, de semovências em ambos os casos. E muitas ressurreições depois.
Ele pensou perto disso durante anos. Um pouco além, é verdade. Mas não muito. É claro que tinha a noção: “morrer não é bem assim. Não é bem assim como no cinema”. Mas faltava-lhe certa dimensão da coisa.
Até o dia de já ter a idade que Fran tinha quando fumava aqueles cigarros escondidos; comandava com dedos e olhos, uma tremenda mira; driblava todo um time para fazer o gol; nadava melhor que todos; usava as palavras certas, tenras; e nem tudo isso protegeu-o de morrer aos 21 anos. E Fran não voltou para mais uma partida de futebol. De xadrez. Para fumar cigarros escondidos e alvejar calangos. Construir grandes caminhões de madeira com amortecedores de lata de óleo de cozinha. Abrir estradas no meio das urzes crescidas sob as fruteiras após as chuvas do inverno. Seu corpo ficou preso ao chão, cheio de lodo e sonhos. Sonhos não cumpridos.
Não houve retorno. Duelos ou estradas poeirentas. Heroísmo algum.
E sua avó apenas ficou alguns anos mais velha em alguns dias, com a morte do filho caçula.
Porém tanta coisa sobreveio antes disso. Pois houve um tempo em que Fran, adolescente, seguiu para estudar em Fortaleza. E Carlinhos, embora fosse cinco anos mais jovem, fez as vezes, no cotidiano-coração da avó, do papel que seu filho mais novo desempenhara até seguir para outra cidade em busca de melhores escolas e um futuro.
β – Angeocídio
“Carlinhos, você reza toda noite antes de dormir?”
O sol ainda é brando. Os cajueiros circundam o alpendre. Filtrando-se pelas telhas sem forro, um jogo de luz e sombras atrai a atenção do menino. Pequeno cinema. Teatro chinês. Tarzan está murcho a um canto, orelhas caídas, as patas ladeando o focinho. O vento sacode a varanda das redes, levemente. Vitória cantarola, piano, muito piano:
“Romântico é sonhar...”, e a palha da vassoura raspa os ladrilhos.
Então o avô surge à frente da casinha amarela, com uma navalha às mãos e uma toalha em volta dos ombros. Detêm-se calmo, investigando os carretéis da cacimba. Depois atravessa o terreiro. O avô inclina sob a carnaúba do alpendre; pigarreia e entra, muito alto. Vitória cessa de varrer.
“Carlinhos, o que você faz toda noite antes de dormir?”
“Faço xixi, vó.”
No quarto o avô tosse. A asma acompanhou-lhe a vida inteira, como uma segunda mulher. Impediu-lhe a sonhada carreira na marinha mercante. Insatisfeito em não ter percorrido o mundo, ele colecionou-o em selos: Montenegro, Panamá, Abissínia. Vitória varre com força. Tarzan eriça as orelhas, soergue a meio o pescoço. E então, seu Erasmo termina de desaferrolhar o portão.
A avó sorri. Os olhos miúdos contraídos sobre as maçãs salientes do rosto. Apruma os meio-óculos, enquanto não tira um olho do croché:
“Mas antes meu filho reza, não é?”
Alheio, o menino brinca com as pedras do xadrez. São de madeira. Umas pretas, outras de um verniz açafrão – mas que insistem chamar de brancas. Dois exércitos. Um está estacionado quase debaixo da rede da avó. O outro rente à porta que do alpendre abre-se para a sala. O menino mira com um só olho, e atira o limão. O limão gira pelos ladrilhos irregulares e choca-se contra o peão. O peão cai. Hora de mudar de lado.
“A comadre pediu tempero verde?”
“Tempero verde, Seu Erasmo.”
“Hoje, tomate não achei.”
O menino recorda o pai lhe dizer atrás da escrivaninha:
“Erasmo é o nome de um sábio holandês.”
Cigarras. O vento percorre as mangueiras. No jardim, espirradeiras oscilam ao sol, e a groselheira verte sombra sobre o velho carrinho-de-mão. A pitangueira está carregada. Foi sua primeira árvore. A de pendurar-se no galho, que, então, parecia demasiado alto. E colher as pitangas maduras. Seu Erasmo sai bocejando para a cozinha no que a avó confere o troco.
“Um, dois, três
Galinha pedrês
Sábio holandês”
“Meu filho sabe que todo mundo tem um anjo-da-guarda?”, diz a avó.
O menino agora joga do lado das pretas. São suas favoritas. O limão segue rumo ao bispo. Os ladrilhos irregulares desviam o curso. O limão raspa o flanco do cavalo. O menino inclina o corpo. Mas o cavalo não cai.
“As músicas que eu...”, cantarola Vitória.
“Carlinhos quer um pedaço de bolo antes de tomar banho?”
Na angeologia da avó – contada com alternada recorrência – os anjos são seres alados, que se vestem de branco. E após o batismo ficam em permanente vigília – como hoje fossem telemóveis. Talvez às nossas costas, prestes a nos socorrer. Mas naturalmente são invisíveis (“Incomparáveis anjos do senhor! Estêvão foi um deles: 'e fixando neles os olhos, todos os que estavam sentados no conselho, viram seu rosto como o rosto de um anjo'”).
“Quer? A vovó vai pegar lá na cristaleira.”
Então os dobrados irrompem. São a febre do avô. E tomam de assalto a casa inteira. O avô está em transe de algum contentamento. Puxa a caixinha de rapé. Vem para o alpendre. Senta-se de frente para a rodagem, os longos dedos tamborilando no braço da cadeira. Uma camioneta passa. O avô não vê.
“Agora não”, diz o menino.
“Agora sim, e muito sim”, rebate a avó, “olhe, olhe, Seu Carlos!”
Metade da corte do rei branco jaz fulminada sobre os ladrilhos. Os dobrados evolvem a todo volume. O avô toma rapé abstraído.
“Mas as pretas estão ganhando, Vó”
“Sem mas nem meio mas. Já passa da hora do seu banho”.
Agora soa o “Hino do Exército”. É uma dos preferidos do avô e também a vinheta do serviço de alto-falantes de Camocim: abre a programação ao fim-da-tarde, e a encerra à nove da noite.
“Que marmota é essa, menino?”, pergunta surpresa a avó.
O menino, encarando-a, esfrega-se com energia contra a parede.
“Eu mato ele, Vó.”
“Matar? Matar o quê, quem, menino?”
“O anjo, o meu anjo-da-guarda.”
“Carlos Bernardo Ximenes Parente, passe já para o banheiro.”
Àquela hora, Fran ao invés de estar fumando em algum lugar mais encoberto da chácara, devia se preocupar com outras coisas: o cinema, o vai-e-vem do tráfego. Tomar um ônibus elétrico e piscar para a normalista de cabelos sob o laquê.
De volta à chácara, ao longe, os sinos batem o sinal da missa. E o dia ganha aquela oblíqua emulsão de luz que envelopava tudo de uma cor espectral. E viabiliza que as crianças tomem de assalto o parquinho que fica à direita da Matriz, defronte o Grupo Escolar, que, ao contrário da escola deles, acolhe um corpo discente mais desabonado.
A camioneta que desce pela rodagem traz gente dos distritos. Amanhã tem festa em Camocim. É dia santo. A procissão do Bom Jesus. O avô bate o lacre da caixinha de rapé. E os dobrados seguem em seu andamento incisivo.
* * *