terça-feira, 30 de novembro de 2010

Uma 'plantation' e duzentos escravos: O'Connor

Luther King sendo preso em Montgomery, Alabama, 1958 [Image by © Bettmann/CORBIS]



Tudo Que Ascende Deve Convergir


Ainda Prosa.

No pequeno inventário em prosa, de postagens recentes por aqui, entre os quais foram citados (e, por vezes traduzidos, em pequenas amostras) Isaac Bashevis Singer, J. D. Salinger, Richard Yates, James Salter, Amos Oz, Paul Auster, J.M.G. Le Clézio e David Foster Wallace – para não falar em Hemingway e F. Scott Fitzgerald – houve um nome ausente, e que nos é caro: Flannery O'Connor. Para mais sobre essa admirável prosadora do Sul dos Estados Unidos, clique AQUI. Entre as melhores destrezas acháveis em O'Connor: a desenvoltura com que ela ata os diálogos à ambiência. E de um modo tão natural que... só pode ser algo americano, no sentido mais lato. No sentido que um Lezama Lima chama de a “expressão americana”.

Abaixo, segue um pequeno extrato de um de seus contos mais amplamente conhecidos: “Everything That Rises Must Converge” [“Tudo Que Ascende Deve Convergir”, que, de resto, nomeia seu segundo volume de contos]:


CONTEXTO: Um jovem recém-formado, aspirante a escritor, acompanha sua mãe até uma terapia onde senhoras de meia-idade, com sobrepeso, esperam perder alguns quilos. No início do excerto, mãe e filho seguem à parada do ônibus que os conduzirá ao centro da cidade:


'I see we have the bus'

“They don't give a damn for your graciousness,” Julian said savagely. “Knowing who you are is good for one generation only. You haven't the foggiest idea where you stand now or who you are.”
She stopped and allowed her eyes to flash at him. “I most certainly do know who I am,” she said, “and if you don't know who you are, I'm ashamed of you.”
“Oh hell,” Julian said.
“Your great-grandfather was a former governor of this state”, she said. “Your grandfather was a prosperous landowner. Your grandmother was a Godhigh.”
“Will you look around you,” he said tensely, “and see where you are now?” and he swept his arm jerkily out to indicate the neighborhood, which the growing darkness at least made less dingy.
“You remain what you are,” she said, “your great-grandfather had a plantation and two hundred slaves.”
“There are no more slaves,” he said irritably.
“They were better off, when they were”, she said.
[…]
They had reached the bus stop. There was no bus in sight and Julian, his hands still jammed in his pockets and his head thrust forward, scowled down the empty street. The presence of his mother was borne in upon him as she gave a pained sight. He looked at her bleakly. She was holding herself very erect under the preposterous hat, wearing it like a banner of her imaginary dignity. There was in him an evil urge to break her spirit. He suddenly unloosened his tie and pulled it off and put it in his pocket.
[…]
The lighted bus appeared on top of the next hill.
[…]
His mother immediately began a general conversation meant to attract anyone who felt like talking. “Can it get any hotter?” she said and removed from her purse a folding fan, black with a Japanese scene on it, which she begins to flutter before her.
“I reckon it might could,” the woman with protruding teeth said, “but I know for a fact my apartment couldn't get no hotter.”
“It must get the afternoon sun,” his mother said. She sat forward and looked up and down the bus. It was half filled. Everybody was white. “I see we have the bus to ourselves,” she said. Julian cringed.
“For a change,” said the woman across the aisle, the owner of the red and white sandals. “I come on one the other day and they were thick as fleas—up front and all through.”
[...]

[Flannery O'Connor, in Everything That Rises Must Converge, Copyright © Farrar Straus and Giroux, New York, s/d]



'Vejo que o ônibus é nosso'

“Eles estão se lixando para sua dignidade”, Julian disse ferozmente. “Saber de si é bom só por uma geração. Não se tem a mais nebulosa ideia de onde se está ou quem se é”.
Ela se deteve e deixou o olhar faiscar sobre ele. “Tenho plena certeza de quem sou”, disse, “e se você não sabe quem é, tenho vergonha de você".
“Ah, inferno”, Julian disse.
“Seu bisavô foi ex-governador deste estado”, ela disse. "Seu avô foi um próspero latifundiário. Sua avó foi uma Godhigh”.
“Olhe em torno de si”, ele disse nervosamente, “será que você sabe onde está agora?” e espanou o ar com uma guinada de braço para indicar o bairro, que a escuridão crescente tornava menos sórdido.
“A gente não deixa de ser o que é”, ela disse. “Seu bisavô tinha uma plantation e duzentos escravos”.
“Não há mais escravos”, disse ele irritado.
“Eles bem que estavam melhores como eram antes”, ela disse.
[…]
Chegaram à parada do ônibus. Não havia ônibus à vista e Julian, com as mãos comprimidas nos bolsos e a cabeça lançada adiante, perscrutava carrancudo a rua vazia. A presença de sua mãe o sobrecarregava no que ela emitia o mínimo sinal. Ele a observava lúrido. Ela se mantinha bem aprumada sob o despropositado chapéu, envergando-o como um estandarte de sua pretensa dignidade. Seguia com ele uma terrível urgência em despedaçar o espírito dela. Súbito, afrouxou a gravata, tirou-a e pôs no bolso.
[…]
O ônibus aceso assomou ao topo da colina.
[…]
Sua mãe imediatamente desandou a falar generalidades destinadas a chamar a atenção de quem quisesse conversar. “Será possível ficar mais quente?” ela disse e retirou de sua bolsa um leque, escuro, com um cenário japonês, que começou a agitar diante de si.
“Tenho pra mim que sim”, disse a mulher dentuça, “mas tenho certeza que meu apartamento mais quente não fica”.
“Deve pegar o sol da tarde”, disse a mãe dele. Ela sentou á borda do banco e observou o ônibus. Estava ocupado à metade. Todos eram brancos. “Vejo que o ônibus é nosso”, ela disse. Julian encolheu-se.
“Uma vez na vida”, disse a mulher do outro lado do corredor, a de sandálias alvi-rubras. “Outro dia eu peguei um em que eles vinham amontoados como pulgas—na dianteira e por todo lado”.
[...]

* * *

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Isso já ocorreu uma vez

Alfredo Camisa, s/d


A Filosofia da Fotografia e a Miopia de Esquerda

A esquerda brasileira causou muito prejuízo à inteligência do país por imbecilidade. Redução, patrulha. Entre os lesados por esse sinistro controle (semelhante ao fascista), de podar modos de viver e pensar em desconforme com a cartilha da esquerda, se encontra Vilém Flusser.

Flusser que, hoje, é muito mais conceituado internacionalmente, como teórico, que, digamos, Haroldo de Campos ou Alfredo Bosi ou Florestan Fernandes. E cuja visão da fotografia e dos processos eletrônicos apenas começa a ser mais debatida e divulgada.

Em sua teoria da fotografia [Towards a philosophy of photography] Flusser, já na abertura, propõe dois divisores de água na cultura humana: a descoberta da escrita linear e a invenção da imagem técnica.

Flusser também dispõe a fotografia como uma superfície que contem uma abstração. Algo que não está ali, agora. E, portanto, para ser captada em todas suas dimensões necessita de um olhar que, ao invés de jogar sobre ela um relance, a escaneie. Em seguida Flusser, de um modo quase ingênuo tenta separar os domínios da fotografia dos domínios da história sob o argumento de que na história tudo é irrepetível – como se mesmo uma cópia de uma foto pudesse ser inteiramente igual ou idêntica à outra, ainda que reproduzida eletronicamente.

Já a fotografia estaria nos domínios da magia. Isso porque as imagens, que no princípio eram mediações entre o ser humano e o mundo, mapeando-o para nós, converteram-se, desde que renunciamos à decodificá-las, em mais um elemento opaco, a que ele chama de idolatria. Ou seja, a projeção de imagens ainda “codificadas”. E desde que o homem se sente inepto a decodificá-las, ele tende a idolatrá-las em recalque.

Flusser alerta, no entanto, que isso já ocorreu uma vez na história da humanidade. Essa rebelião contra a imagem. E que foi justamente essa sublevação o que propiciou o surgimento da escrita linear.

As teorias de Flusser por mais excitantes que sejam - e elas o são - devem ser vistas com serenidade. Com sobriedade. Nem exaltadas, nem condenadas em bloco – por exemplo, por usarem termos bastante datados – ou no mínimo discutíveis – como “alienação”.

O certo é que Flusser caiu na voga de momento. Há teses que o comparam ao Radiohead. E os que escrevem melhor sobre ele, esquadrinhando a riqueza de suas sugestões, o fazem ao largo da feira pós-moderna em que se converteu sua teoria para o repasto acadêmico enquanto moda.

Em sua biografia, no entanto, fácil perceber que Flusser foi desligado da USP não pelo regime militar, mas pelos aparelhos de esquerda, que o viam sob suspeita. Pelos intelectuais da Universidade de São Paulo, que cartorialmente exigiram, deste que é um dos maiores teóricos da fotografia, desde Benjamin, uma titulação formal que ele não possuía – como se fosse impossível ministrar aulas em uma instituição de ensino superior por notório saber.


* * *

domingo, 28 de novembro de 2010

Eu acredito no mar

Kurt Schwitters, Drawing A2: Hansi, 1918



Acreditar

Você acredita em duendes? Acredita em celebridades? Acredita em políticos? Acredita em sucesso? Acredita em tecnologia? Acredita em Jean Baudrillard? Você acredita em comunicação? Acredita que sua artesania sairá melhor feita num MaC que num PC? Acredita no BOPE? Acredita em estados alterados de percepção?

Eu acredito no mar. Em tomar um sorvete de tapioca no Juarez, e dar uma volta no quarteirão.

* * * 

Let's write something, let's sing

[s/i/c]




Três Truísmos

I.

É simples. Quer escrever ficção? Leia ficção. Quer escrever poesia? Leia poesia, escute música. Quer escrever ensaios, crítica? Leia poesia, ficção, história, um pouco de filosofia, estética, etnologia... Quer traduzir? 

Leia um pouco de tudo. Leia até fotonovelas, se elas ainda existirem.

Mas antes.

Antes, é preciso viver.

É preciso viver com intensidade. E saber que a vida tem um fim. Não há qualquer possibilidade de se viver intensamente sem pensar na morte.

II.

Se há sensações que são inalcançáveis pelas palavras? A vasta maioria delas. Porém a palavra, com todas suas limitações, é a porta no muro por onde se pode partilhar sensações. E arte se faz desse partilhamento – o que passa longe de dizer comunicação. A música, mesmo composta de sons inarticulados em sílabas, sugere frases: uma sintaxe. Pode-se adivinhar palavras por trás de sons, timbres, tons, dinâmicas, contrapontos, crescendos... Quase o mesmo se pode dizer da pintura.

III.

No Ocidente, grosso modo, os músicos e os filósofos falam alemão; os pintores são flamengos; os escritores (e a música pop), britânica; Cervantes e o sentimento do trágico, espanhol; o espírito do romance, provençal e italiano; a raiz do ensaio, com Montaigne, francês; o sentimento do épico e o excedente de perda (via sebastianismo), paradoxalmente, português. E quanto às Américas? As Américas são o liquidificador que processa tudo isso com extrema versatilidade. É o local em que, não por mitos de bons selvagens, mas pela proximidade de uma natureza menos domada pelo homem – assim como por uma maior mestiçagem – a literatura canta ao invés de soletrar. A América aponta para a concretude. O mundo existe mais por aqui. É menos uma solipsia. Uma invenção da mente. Uma metafísica.

* * * 

sábado, 27 de novembro de 2010

Mar é um afrodisíaco para perdões imediatos

John Singer Sargent, The Derelict, c. 1876



um conto
Ensaio Sobre as Águas


Quem os levou foi Leandro. Como piloto da canoa, o filho de Ivan, revelou-se afoito. O inverso do pai, que as fazia; e era de medir palavras. Talvez, ademais, por certa tartamudez não infrequente entre os pescadores de Bitupitá. Mas a leviandade de Leandro andava bem à medida de seus dezessete. Tirou finas em mourões, para exibir o quanto detinha o manejo da embarcação. Porém, ao arriscar uma manobra mais ousada, abalroou a proa contra a tela de um curral. O proprietário, que se encontrava próximo, em outra canoa, bem mais robusta que a guiada por Leandro, esbravejou feio. Mas logo a contrariedade dissipou-se.

E, então, todos foram convocados por ele, aos gritos, largos gestos, para peixe grelhado e cerveja. Logo estavam na água, dando braçadas que suprissem os sessenta ou setenta metros entre as duas embarcações. Joel foi o primeiro a chegar. E soergueu-se sozinho. Flávia veio em seguida. Joel ajudou-a a subir. Milena e Álvaro chegaram na sequência. E, por último, pois haviam mergulhado um tanto depois de seus passageiros, Leandro e outro garoto, que lhe ajudava ao cabo, na condução do barco. Função a que eles chamam de “cabeiro”, e que envolve, entre outras fainas, a de aspergir a vela com água do mar, colhida em uma cabaça.

Todo o time de despesca do curral usava um uniforme laranja, de mangas compridas, chapéus de palha à cabeça, presos ao queixo por cordames de tucum. O proprietário, Antônio José, sentado à popa, era auditor fiscal, e revelou-se bom anfitrião. Sem chapéu, cofiava vasto bigode grisalho; e brincou mais de uma vez com a desastrada manobra de Leandro, a quem se referia como “Ivanzinho”:

O Ivanzinho ainda não mediu os costados da barca? Se o Ivan soubesse das estrepolias desse menino… sei não…

À certa altura, Leandro sentiu os brios, amuou-se um tanto. Mas logo estavam todos comendo um serra fresquinho, recém retirado do mar e bebendo cerveja. Milena preferiu soda. Também provaram de uma zambaia, que impressionava mais pela extensão esguia do corpo, alvíssima carne, quase azulada, que pelo sabor. Em dado momento, as postas de peixe, depois de fritas, eram largadas sobre as tábuas do banco de popa. E Seu Antônio José não perdia vez:

Podem comer sem susto. Isso aqui é mais limpo do que os pratos da Toinha!

Ele realmente tirara aquele fim de manhã para ironizar um tanto com o atabalhoado jovem timoneiro. A mãe de Leandro, Toinha, era proprietária de uma pequena barraca na praia, onde preparava algum quitute. Mas, então, ao banco de popa, havia também uma travessa com farofa. E, após fritas, quem o desejasse podia polvilhar as postas na farofa antes de degustá-las. É provável que Joel e os outros jamais houvessem provado peixe mais aprilino.

Joel restou à popa, com Flávia, em alguma conversa com Seu Antônio José. Álvaro e Milena seguiram mais à proa, retrocederam; e, por fim, acabaram de pé, equilibrando-se sobre o banco de vela, agarrando-se de um flanco e de outro, ao mastro bem fincado sobre a carlinga. Foi quando, de fato, começou a “despesca-grande” do curral – como eles chamam – após findarem meticulosa limpeza da extensa rede.

E então a rede, com sua trama de fios azuis, foi sendo alçada à canoa ao empuxo concentrado de quase todo grupo, enquanto três deles faziam lastro, escorados no flanco oposto. Seus pés coincidindo com os ressaltos no cavernamento. E o ritmo do arrasto da rede era ditado por comandos de voz, e roçavam um canto. Dezenas de peixes eram tão pequenos que coavam-se pelo náilon das malhas, e as escamas soltas na água emprestavam-lhes um efeito fosforescente à medida que a pressão sobre os outros peixes, maiores, crescia; e a rede entumescida roçava o verdume da canoa.

E logo que a rede subiu mais à tona, Joel pode divisar que ali vinha um peixe de dimensões excepcionais. Pois, então, toda a rede vibrava em espasmos de uma formidável violência. Verdadeiros trancos. Algo grande debatia-se ali pela própria vida.

Joel não estava errado. Tratava-se de um enorme cação-lixa de cerca de dois metros e um quarto. Seu Antônio José lhe dissera que, inicialmente, supusera uma aruanã.

Os pequenos peixes prateados continuavam a vazar pelas malhas. E o rastro fosforescente das escamas luzia mais intensamente sobre o verde das águas. Flávia, que estava bem à frente de Joel, este encostado ao banco de popa, escorou-se nele. E ele sentiu um vaga de calor subindo pela coluna. E fortemente excitado pelo volume das formas dela, deslizou a mão pela cintura da mulher. Por ser alvejado, de leve, nas faces, pelos cabelos dela, molhados por aquela água salífera, restos de maresia na alva pele dela, afagada por sua mão, sentiu um imediato, ardente desejo de possuí-la. Ali. Naquele instante. O short branco úmido, colado e translúcido revelando-lhe a minúscula parte de baixo do biquine, o bem torneado das pernas:

Será que a canoa pode com o peso desse bicho? – ela perguntou – com travo excitado na voz. Não por receio, mas em admiração, porque nunca havia visto peixe maior que aquele, vivo, debatendo-se, bem diante de si.

Fique tranquila – Joel disse – eles sabem o que fazem.

No meio do cardume, do amontoado de espécimes diversas, o grande tubarão debatia-se com vigor. Foi dificultoso subir com a rede para dentro. A borda da canoa a inclinar-se tão próxima à face da água que eles viam a hora de, em caso de uma onda mais robusta, um jato borrifar-se para o cavername da embarcação. Mas isso não aconteceu. Ainda assim Flávia inclinara-se inteira para o lado contrário, em lastro. E Joel acariciou-lhe o pescoço e os ombros.

O faz por instinto, pensou. Coragem não lhe falta. Nem o dizer a verdade. E nem beleza. Simples exercícios matinais, alguma natação ajudavam a manter o corpo dela em plena forma.

E enquanto o time de despesca desdobrava-se na faina de passar para dentro da canoa a rede com o enorme cação, Joel deu de lembrar de como haviam feito amor, na noite anterior. Ela, então, preferira um modo gentil, lento. Fixando-o nos olhos. Ele adivinhando, podendo ler o prazer dela sobretudo na contração de seus lábios. Tremiam. Repuxavam-se. Convulsionavam-se. Retesavam-se ou distendiam. Como molduras do que sentia. Desenhavam estranhas formas. Mapas. E quando chegavam próximos a mascar uma goma inexistente, enchiam-se de saliva. Era o sinal. Ela iria gozar. Como quase sempre, sem espalhafato ou grandes urros. Mas por um gemido apertado, doce de ouvir.

Porém, então, o sol caía em placa sobre eles. E ele, às costas dela, podia entrever-lhe o perfil iluminado por sucessivos e diferentes matizes de reflexos do sol no lombo das ondas.

Uma vez lançado sobre as cavernas, o enorme cação bufava feito um touro. Emitindo esse estanho ruído pelas brânquias que vibravam intensamente. Até que um dos tripulantes enfiou o dedo em seu minúsculo olho lateral e, com um cacete, encheu-lhe de pauladas na parte de cima da cabeça. E o matou. Nessa hora, Flávia e Milena desviaram o olhar. Álvaro fixava a cena fascinado, desde o banco da vela, do qual Milena havia descido:

Ah uma máquina! – haviam trazido uma câmera. Uma Cannon de boa resolução. Mas a câmera havia ficado na outra canoa. Teria sido impossível trazê-la a nado.

Morto o bicho, nenhum fio de sangue saía de seu enorme corpo, para onde convergiam todos os olhares. Até um polvo de dimensões razoáveis, ao lado de pequenos cardumes de sardinhas e dos samburás dos pescadores, não parecia mais que um coadjuvante perto daquele Leviatã.

Vocês me deram sorte – disse seu Antônio José – esse bicho é dos maiores que já caiu na rede nos últimos tempos – tomou um gole de cerveja, ao modo de brinde, em aberta comemoração.

Depois, Flávia fez questão de tocar a pele áspera do cação. E foi hora de Joel pensar:

Ah, uma máquina!

Mas quando Flávia brincou de arremessar uma pequena sardinha para dentro da boca do bicho, quase pondo os dedos ao alcance da mandíbula do tubarão, um pescador a advertiu que nisso algum risco havia:

Pruquê pode inda tê um ‘restim’, um fiapo de vida nele, né, dona? A ‘rente’ nunca sabe…

Num gesto brusco e automático Flávia afastou a mão. O sol do meio-dia lacerava. E não é preciso dizer com que destreza eles voltaram nadando para a outra canoa, após despedirem-se. A imaginar imensos cações-lixa como aquele, nadando sob seus corpos. Porém Joel e Flávia nadavam em reguladas, bem ritmadas braçadas. E, quando o amigo de Leandro tratava de soerguer Álvaro, desta feita o último a chegar, utilizando-se do cabo de vela, ainda teve tempo de gracejar:

Mas que merozinho mais pesado! – em referência ao porte físico um tanto rotundo do outro.

Na volta, Leandro ainda cometeu segunda imprudência. Ao tentar costear de fininho a amurada de um curral, acabou involuntariamente fisgando, com o leme, o cabo de âncora de uma outra canoa e rebocando-a a toda velocidade. Seu amigo, arriscadamente, pulou n’água para desenredar o cabo do timão, no que a proa da outra canoa achegava-se perigosamente, não só pela tração da canoa em que eles estavam, como também movida aos insultos de seu ocupante, que, até então, pescava tranquilamente, de linha, acompanhado de uma filha pequena.

Desfeito o bizarro enleio, o outro falou com Leandro como se nada houvesse acontecido. E até lhe perguntou se certa partida de madeira já havia chegado ao barracão de Ivan. O mar é um afrodisíaco para perdões imediatos.

Logo estavam na praia. Sentados em rústicas cadeiras de armar, na barraca de Toinha, tomando água de côco:

Ah, ainda bem que eles vão trazer o cação para praia – disse Milena, que estava ansiosa pelas fotos.


Mas Joel não a escutava. Apenas fixava o reflexo do sol no lombo das ondas.


O vento tépido vergava as palmas do vasto coqueiral. Todos os trapiches, barracas e o precário casario que  fronteava o mar assemelhava uma pauapiqueira que não tinha mais fim: a linha branca dos currais a seguir até o perder de vista, ao longo do mar. As densas marés que lambiam a praia antecipavam um mar alto revolto, traiçoeiro. Uma costa que desde os tempos da colonização tantos naufrágios acumulara. Especialmente quando se demandavam as enseadas cearenses provindo do Maranhão, do Grão-Pará. E era mais fácil, pelas correntes marinhas ser tranpolinado para o Caribe, ir até a Europa e retornar. Além disso, a cabotagem ao largo da costa maranhense seguia desviando-se de arrecifes. Em um desses naufrágios,  aos 41 anos, morrera Gonçalves Dias. Uma ironia, que um poeta que haja falado em terras e palmeiras, haja morrido no mar. 


Ao fim da tarde, a espessura do enorme tubarão descansava sobre a areia da praia.




* * *

Porém onde eles não tinham sido quebrados

L.S. Lowry, Street Scene, Southport, s/d


Que é mais ou menos como cada um de nós faz

Cheia de nove horas às nove horas, ela estava com dor de cabeça. Sua cabeça de vento parecia ser uma das cadas cabeças que tinham uma sentença. Mas, como não há árvore que o vento não tenha sacudido, era uma sentença longa demais para caber na cada cabeça dela, mesmo que um jarro trincado – como estava sua cada cabeça – alguma coisa recorda. E, então ela procurava os cacos desse jarro. Porém onde eles não tinham sido quebrados, que é mais ou menos como cada um de nós faz sem se dar conta. Pois quem conta com a panela alheia costuma ficar sem ceia. E cheia de nove horas às nove horas e cinco minutos, ela tomou as Aspirinas; a pensar que há um limite, uma medida para vida. E sua cada cabeça pensou na morte.

Mas logo esqueceu. Que é mais ou menos como cada um de nós faz. 


* * *

Long ago

L.S. Lowry, Portrait of Ann, 1957

.                                   
depois de
tirar, quilo a
quilo, todo
ódio das
sacolas
seu coração e
o meu saem
das gaiolas


* * *

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A imagem imóvel da eternidade


Jean Vigo, A propos de Nice, 1930


Fragmento sobre tempo e cinema

E se disséssemos que o cinema “é a imagem imóvel da eternidade”? Isso seria reduzi-lo à fotografia? Seria forçar sua coincidência com a famosa fórmula do tempo em Platão?

Não. O melhor cinema é imóvel. Quer dizer, visa a imobilidade em tendência. Assim como a melhor escritura tende para o silêncio. Assim como as melhores fotos – mesmo as, digamos, de uma natureza morta – dispõem-se para o movimento: indicam-no.


CODA

Pode-se pensar em George Oppen: " eu veria o que a folha da grama veria, se tivesse olhos". Ou J.M.G. Le Clézio: "a realidade da matéria, vista segundo suas mentiras pelos olhos de um mono. Vista pelos olhos de um polvo. Vista pelos olhos das ervas e dos gafanhotos. Pelas anêmonas do mar. Pelos pepinos-do-mar. Pelas baratas. Pelas folhas de gerânio [...] O que é morto, é. O que é vivo, o que é animado ou imóvel, é. E o que não é mais, é ainda". O cinema, como movimento [movie=moverzinho em inglês] tende à imobilidade, ao still. A fotografia, imóvel, tende ao movimento. 


Mas onde está mesmo Zenão?


* * *

Chegam a latir para os impunes pedestres

Dieter Roth, Rörelse I Konsten [detalhe], 1961



À Prova



Fortaleza é uma cidade à prova de civilização.

Daí vêm algumas de suas riquezas. E também o que há de mais nefasto.

O que há de mais nefasto vai e volta em suas ruas sobre quatro e duas rodas. E chega a latir para os pedestres que passam tão impunemente pelas calçadas, quase submersas pelos sucessivos recapeamentos do asfalto.


*   *   *

Mas o grito amassa-se entre

John Chamberlain, Automobile parts and other metal [detail], 1960




À Letra


Um grito vem da rua
como uma lixa, excerto

E passa sobre o tampo
da mesa com o livro aberto

Nenhum grito na página
resvala para o cesto

Mas o grito se amassa
entre a mão e o texto


* * *

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Over Wols

Wols, Ohne Titel,  c. 1945

Wols (Alfred Otto Wolfgang Schulze), Oui, oui, oui, 1947



Een kleine nota

.                                      "Maar zolang er sterren boven je zijn"

O que ressalta no informalismo do pós-guerra é atualidade mutilada do corpo. 
Isso nos Estados Unidos deságua em expressionismo abstrato. Em pintura gestual sob o impulso de jazz. Em Jackson Pollock. 
Na outra banda do Atlântico Norte isso vai dar no tachismo. Em um abstrato lírico, um tanto sortido – mas pouco geométrico, em geral. Uma espécie de anti-cubismo. Que pode, por exemplo sugerir entidades proto-fecundadas que são simultaneamente de dois reinos: vegetal e animal: como em Wols. Como se em Wols, às vezes, houvesse uma mirada pela lente de um microscópio.
Close-ups são rudes”, nos sugere Auden.
Wols, que além de pintor era excelente fotógrafo, sabia disso. E em alguns de seus quadros há tanta proximidade do objeto que parece poro, que parece célula, que parece bactéria. Escama. Bulbo. Ruga. Estria. Gema. Alga. Verruga. Bráctea. Fibra. Limo. Lâmina epidêrmica. 
Wols viveu a guerra na pele: exílio e campo de prisioneiros. Firmou essa paisagem de exílio.  Só que de tão perto, que chega a abismar. Depois de abandonar uma graduação em etnologia e passar pela Bauhaus, por sugestão de Moholy-Nagy,  buscou na França, ainda livre, um alívio, quase autista, em seus desenhos, aquarelas e águas-fortes povoados de micro-talhes, semelhando entes biológicos. Ou enleados de pelos, pentelhos, grandes vaginas sem o plástico amparo das pernas. Ou então ramas. Algas. Ou então amêijoas. Ou cracas. Ou moluscos não classificados por Lineu. Ou.
Wols, como Benjamin, esteve em Ibiza e no sul da França. Tinha múltiplos interesses: fotografia, cinema, pintura e era também músico. Em sua foto mais famosa surge um coelho esfolado.
Descobri Wols por meio de Antônio Bandeira, de quem foi amigo. Pesquisando sobre Bandeira. Todavia, Wols assoma menos geométrico que Bandeira. Morreu, no entanto, ainda mais jovem, aos 37 anos. De infecção alimentar dizem uns. De alcoolismo, segundo outros.
Wols concretiza não o objeto, mas a imagem sonhada que inexistia [desse objeto]. Há qualquer coisa de muito intuitivo. De muito profundo, direto. Simples.
Algo que avessa em sentir a hora de pensar. Que ao mesmo tempo que convoca o olho, convoca a mão. Que ao convidar a mão, convida o nariz. Que ao solicitar o nariz, solicita o ouvido. Que ao chamar o ouvido, chama o sexo. Que.
Faz os sentidos alternarem-se por turnos.
E de algum modo misterioso ele, que era alemão, parece mais perto da tradição dos grandes pintores flamengos.


* * *