Luther King sendo preso em Montgomery, Alabama, 1958 [Image by © Bettmann/CORBIS]
Tudo Que Ascende Deve Convergir
Ainda Prosa.
No pequeno inventário em prosa, de postagens recentes por aqui, entre os quais foram citados (e, por vezes traduzidos, em pequenas amostras) Isaac Bashevis Singer, J. D. Salinger, Richard Yates, James Salter, Amos Oz, Paul Auster, J.M.G. Le Clézio e David Foster Wallace – para não falar em Hemingway e F. Scott Fitzgerald – houve um nome ausente, e que nos é caro: Flannery O'Connor. Para mais sobre essa admirável prosadora do Sul dos Estados Unidos, clique AQUI. Entre as melhores destrezas acháveis em O'Connor: a desenvoltura com que ela ata os diálogos à ambiência. E de um modo tão natural que... só pode ser algo americano, no sentido mais lato. No sentido que um Lezama Lima chama de a “expressão americana”.
Abaixo, segue um pequeno extrato de um de seus contos mais amplamente conhecidos: “Everything That Rises Must Converge” [“Tudo Que Ascende Deve Convergir”, que, de resto, nomeia seu segundo volume de contos]:
CONTEXTO: Um jovem recém-formado, aspirante a escritor, acompanha sua mãe até uma terapia onde senhoras de meia-idade, com sobrepeso, esperam perder alguns quilos. No início do excerto, mãe e filho seguem à parada do ônibus que os conduzirá ao centro da cidade:
'I see we have the bus'
“They don't give a damn for your graciousness,” Julian said savagely. “Knowing who you are is good for one generation only. You haven't the foggiest idea where you stand now or who you are.”
She stopped and allowed her eyes to flash at him. “I most certainly do know who I am,” she said, “and if you don't know who you are, I'm ashamed of you.”
“Oh hell,” Julian said.
“Your great-grandfather was a former governor of this state”, she said. “Your grandfather was a prosperous landowner. Your grandmother was a Godhigh.”
“Will you look around you,” he said tensely, “and see where you are now?” and he swept his arm jerkily out to indicate the neighborhood, which the growing darkness at least made less dingy.
“You remain what you are,” she said, “your great-grandfather had a plantation and two hundred slaves.”
“There are no more slaves,” he said irritably.
“They were better off, when they were”, she said.
[…]
They had reached the bus stop. There was no bus in sight and Julian, his hands still jammed in his pockets and his head thrust forward, scowled down the empty street. The presence of his mother was borne in upon him as she gave a pained sight. He looked at her bleakly. She was holding herself very erect under the preposterous hat, wearing it like a banner of her imaginary dignity. There was in him an evil urge to break her spirit. He suddenly unloosened his tie and pulled it off and put it in his pocket.
[…]
The lighted bus appeared on top of the next hill.
[…]
His mother immediately began a general conversation meant to attract anyone who felt like talking. “Can it get any hotter?” she said and removed from her purse a folding fan, black with a Japanese scene on it, which she begins to flutter before her.
“I reckon it might could,” the woman with protruding teeth said, “but I know for a fact my apartment couldn't get no hotter.”
“It must get the afternoon sun,” his mother said. She sat forward and looked up and down the bus. It was half filled. Everybody was white. “I see we have the bus to ourselves,” she said. Julian cringed.
“For a change,” said the woman across the aisle, the owner of the red and white sandals. “I come on one the other day and they were thick as fleas—up front and all through.”
[...]
[...]
[Flannery O'Connor, in Everything That Rises Must Converge, Copyright © Farrar Straus and Giroux, New York, s/d]
'Vejo que o ônibus é nosso'
“Eles estão se lixando para sua dignidade”, Julian disse ferozmente. “Saber de si é bom só por uma geração. Não se tem a mais nebulosa ideia de onde se está ou quem se é”.
Ela se deteve e deixou o olhar faiscar sobre ele. “Tenho plena certeza de quem sou”, disse, “e se você não sabe quem é, tenho vergonha de você".
“Ah, inferno”, Julian disse.
“Seu bisavô foi ex-governador deste estado”, ela disse. "Seu avô foi um próspero latifundiário. Sua avó foi uma Godhigh”.
“Olhe em torno de si”, ele disse nervosamente, “será que você sabe onde está agora?” e espanou o ar com uma guinada de braço para indicar o bairro, que a escuridão crescente tornava menos sórdido.
“A gente não deixa de ser o que é”, ela disse. “Seu bisavô tinha uma plantation e duzentos escravos”.
“Não há mais escravos”, disse ele irritado.
“Eles bem que estavam melhores como eram antes”, ela disse.
[…]
Chegaram à parada do ônibus. Não havia ônibus à vista e Julian, com as mãos comprimidas nos bolsos e a cabeça lançada adiante, perscrutava carrancudo a rua vazia. A presença de sua mãe o sobrecarregava no que ela emitia o mínimo sinal. Ele a observava lúrido. Ela se mantinha bem aprumada sob o despropositado chapéu, envergando-o como um estandarte de sua pretensa dignidade. Seguia com ele uma terrível urgência em despedaçar o espírito dela. Súbito, afrouxou a gravata, tirou-a e pôs no bolso.
[…]
O ônibus aceso assomou ao topo da colina.
[…]
Sua mãe imediatamente desandou a falar generalidades destinadas a chamar a atenção de quem quisesse conversar. “Será possível ficar mais quente?” ela disse e retirou de sua bolsa um leque, escuro, com um cenário japonês, que começou a agitar diante de si.
“Tenho pra mim que sim”, disse a mulher dentuça, “mas tenho certeza que meu apartamento mais quente não fica”.
“Deve pegar o sol da tarde”, disse a mãe dele. Ela sentou á borda do banco e observou o ônibus. Estava ocupado à metade. Todos eram brancos. “Vejo que o ônibus é nosso”, ela disse. Julian encolheu-se.
“Uma vez na vida”, disse a mulher do outro lado do corredor, a de sandálias alvi-rubras. “Outro dia eu peguei um em que eles vinham amontoados como pulgas—na dianteira e por todo lado”.
[...]
[...]
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