quinta-feira, 15 de outubro de 2009

"Eu sou a minha história", diz Robert


Capa da edição em dvd de Im Lauf der Zeit, Wim Wenders, 1976





No transcurso do tempo
-Im Lauf der Zeit [No Decorrer do Tempo], Wim Wenders, 1976, 176 min, p&b.

Um homem jovem se barbeia à janela de uma enorme van estacionada diante de um rio, de manhã cedo. De repente, ele entrevê pelo retrovisor um fusca vindo à toda velocidade, erguendo um rastro de poeira pela estrada vicinal. O fusca é atirado ao rio e, de dentro,  sai um sujeito acabrunhado, com uma mala grande, de metal. É recebido pelo que se barbeava e juntos começam uma relação de amizade e descoberta durante uma jornada através de pequenas cidades.
Muito pouco acontece de notável em Im Lauf der Zeit [No decorrer do tempo], um road-movie de cerca de três horas, conhecido em inglês sob o título de Kings of the Road. Não há mais Alemanha Ocidental ou Oriental, cujo rio em que o fusca é jogado, demarcava a fronteira. As salas de cinema em cidades pequenas desapareceram em quase qualquer lugar do mundo. Talvez as pessoas sejam menos gentis umas com as outras. O filme foi feito trinta e três anos atrás. E, no entanto, no decorrer desse tempo, Im Lauf der Zeit prossegue sendo o mais completo [e talvez o mais amado] dos filmes de Wenders. Pelo menos pelo grupo de aficcionados por seu cinema, que, de resto, é um cinema irregular. Certamente menos complexo que o de seus pares de geração: Herzog e -- sobretudo -- Fassbinder. Mas, em seus melhores momentos, não menos instigante. Os livros e artigos de Wenders são também um bocado interessantes.
Como pode ser assim? Em Paris, Texas (1984), Asas do Desejo [Der Himmel über Berlin] (1987) e  Far way, so close (1993), por ilustração, e em tantos outros features, ele contou com o aparato técnico incomensurável, hollywoodiano. Im Lauf der Zeit, no entanto, seu sexto filme - e o derradeiro de uma trilogia de road movies - foi gravado por uma jovem equipe semi-amadora, durante poucas semanas, junto à fronteira da Alemanha Oriental, e ajudou a confirmar a reputação dos atores que encarnam os dois protagonistas da história.
Hans Zischler, por exemplo, que responde pelo atormentado marido que atira o fusca rio a meio, vem aparecendo em mais de uma centena de filmes ao longo de sua carreira, inciada em 1968. Zischler também escreveu, em 1996, um interessante livro sobre a relação entre Kafka e o cinema [Kafka vai ao cinema, trad. Vera Ribeiro, Jorge Zahar, Rio, 2005]. No capítulo dois, dedica, aliás, uma inteira seção aos antigos “comentaristas” ou “explicadores” de filmes: “os Ponrepos participavam da ação exibida na tela. Eram como se diz em iídiche, Versteller, termo que joga com os vocábulos alemães verstellen, simular ou disfarçar e vorstellen, imaginar ou apresentar”. [Aqui, o próprio termo Ponrepos, que provém do francês, tem a ver com ponto-de-repouso].
No filme, Zischler é Robert Lander, um pediatra assombrado pelo fim da relação com a esposa e, ao mesmo tempo, pela tensa relação com a figura paterna - seu pai é um gráfico da província. Num determinado momento, zanzando por meia fronteira inter-alemã, ele tenta contar sua história a Bruno Winter [Rüdiger Vogler], que leva a vida consertando projetores nas cada vez mais escassas e precárias salas de exibição das cidades pequenas. No instante em que Vogler lhe diz: “você não precisa contar sua história”, ele retruca: Ich bin meine Geschichte [“eu sou minha história”].
Tudo indica que a obsessão de Wenders pela questão da história, da narração, da origem, radica em sua leitura de Walter Benjamin, a quem faz referências expressas em filmes posteriores, tal como Die Himmel über Berlin [O Céu sobre Berlim (título em inglês: Wings of Desire), 1987, com roteiro do escritor e dramaturgo austríaco Peter Handke]. 
Mas a questão da origem e da história é também evocada no momento em que Winter encontra Pauline. Num pequeno parque de diversões ela achega-se a ele indagando por fogo. Ele acende um palito de fósforo, mas não há um cigarro a ser aceso nos lábios dela, senão uma vela na nuca de uma pequena estatueta de Hitler: "Luz do Führer", comenta Winter em ironia, segurando a estatueta - óbvia relíquia dos tempos do nazismo e das agruras da II Guerra, tempo traumaticamente evitado por muito tempo nas telas da Alemanha. Isso se dá ao mesmo tempo em que Lander visita o pai e lhe confessa, num ambiente de grande tensão, que, ao contrário dele, pai, que vivera um casamento regular até a viuvez, acabara de sparar-se da mulher. E, no entanto, tratando o tema de um passado recente coletivo e incômodo com distanciamento e ironia, Wenders, uma vez mais, aponta para suas obsessões: a paternidade (origem) e o desenvolver-se e modificar-se no transcurso do tempo (história). Inclusive e não menos pelo contato com o "outro". Daí o fascínio de Wenders pela cultura e os filmes americanos bem como com o universo pop. Tanto em seus ícones mais comezinhos, como o tênis, o macacão, os óculos escuros, os paperbacks, o t-shirt, a motocicleta - ou mais propriamente a moto com sidecar, que os amigos utilizam em uma sequência. Mas principalmente a música, os temas de rock que pontuam No Decorrer do Tempo do começo ao fim. E isso inclui baladas country, com guitarras em slide, que antecipam em alguns anos sua ulterior colaboração com Ry Cooder, que entre outras, nos irá legar a trilha sonora de Paris, Texas e o magnífico documentário sobre a música cubana Buena Vista Social Club [último filme que me levou três vezes ao cinema em uma semana].  
Em Im Lauf der Zeit, a primorosa cinematografia em preto e branco do holandês Robby Müller, contumaz colaborador de Wenders [mas também de outros cineastas de renome, como Jim Jarmusch, Lars von Trier e até mesmo o grande Antonioni]; a argúcia dos diálogos, em parte improvisados [ou da ausência deles: as grandes pausas, os litotes]; o fluxo aparentemente lento das tomadas fluindo em belos planos sequência, mas nem sempre; a exuberância da personagem encarnada por Rüdiger Vogler, ou por quase cada personagem secundário, que, de resto, não são tantos assim -- como a bilheteira Pauline ou um recém-viúvo, cuja mulher acabara de morrer num choque entre o automóvel que ela guiava e uma árvore; tudo ajuda a emprestar tinta para converter esse filme modesto num verdadeiro mosaico contemporâneo sobre exploração, limites, auto-conhecimento, comunicabilidade ou sua ausência. [Aqui, pode-se lembrar o que dizia Robert Bresson: "a incomunicabilidade está na base do que faço"].
Winter [Vogler] é o itinerante, cuja casa é a própria estrada. O filme começa com ele ouvindo o depoimento de um antigo músico de cinema. O cinema é a paixão de Winter, mas ele nunca declara isso. Apenas percebe-se. Como quando ao flertar com a bela bilheteira de uma salinha tacanha da província, ele se dá conta de que a projeção do filme, um pornô, está fora de foco. Sobe então até a cabina de projeção, e a encontra num tremendo estado de desmazelo, enquanto o próprio projecionista masturba-se ao assistir o filme.  Só depois de reparar o projetor e deixar tudo em ordem, o foco recobrado, é que ele se volta para o affair e para a bilheteira. 
Winter, ao contrário de Lander, não cria limo jamais. Ele dorme com a bela bilheteira Pauline, num sofá, nos acanhados bastidores do cinema. Não se vê a cena de amor, um único beijo. Ao acordarem juntos, ele diz a ela que partirá logo em seguida. E uma lágrima escorre silenciosa pela face dela. Winter toca a lágrima na face de Pauline com seu indicador  e a trás de volta com o dedo para seus próprios cílios e face. Essa “alba” – ou poema escrito durante a separação dos amantes ao romper da aurora – atualizada é talvez a única cena mais sentimental nesse filme um tanto austero, de fino humor e belo tratamento das personagens, à base de distanciamento, decoro e observação do outro. E é uma bela cena. Mas ao fim de tudo, Winter parte, porque para quem está sempre em viagem, a vida não é senão uma sucessão de partidas. O que também equivale a dizer: uma sucessão de perdas diante das quais se deve agir com ponderada resignação.
Não se entrevê propriamente um “progresso moral” em nenhum dos dois amigos durante sua pequena odisséia. Ao temperamento bonachão e bem-humorado de Winter se contrapõe a tensão e desassossego de Lander.
E, ainda assim, é Lander quem – a partir de sua experiência com crianças (afinal, ele é um pediatra) – desencadeia uma série de momices que ambos ficam a fazer, num jogo de sombras, atrás da tela de projeção de uma sala repleta de colegiais, e cujos problemas com áudio impediam a projeção de um filme. A brincadeira rende e acaba apaziguando e divertindo esse grupo de crianças impacientes. É também Lander quem descobre algo que vai para além do mapa e instiga isso em Winter. Como quando ambos ficam divagando sobre nomes de lugares. Alguns bem estranhos, como os povoados de  Machtlos [Impotência] e Friedlos [Desassossego], separados por uma colina chamada Toter Mann [Homem Morto].
Algumas das sequências mais belas são externas tomadas da imensa van movendo-se pelas estradas, com o pequeno boneco-logo da Michelin dependurado em uma dos lados da dianteira. Apagado durante o dia. Aceso em lâmpada, durante a noite. 
Muitas perguntas ficam sem resposta.
Lander é um tipo excessivamente livresco e cerebral. O jornal segue sempre em sua mão. Ao por exemplo entrever um grupo de crianças soltando barquinhos de papel debaixo de uma ponte, ele desce pelos degraus até lá. Pede licença para se apropriar de um dos "barcos", que eram feitos de folha de jornal, o desmancha e começa a lê-lo. Mais intuitivo e sereno, Winter repassa uma sensação de estoica resignação diante da vida, além de um extremado senso de humor.
É a contaminação entre ambos, a comunicação e, sobretudo, a incomunicação entre os dois – o não dito, o mal-entendido, o subentendido de forma equívoca ou subjetiva – o que faz Im Lauf der Zeit, no decorrer do tempo, ser esse filme, atemporalmente fascinante e pleno de poesia. 


[Fortaleza, 15.10.09]



* * *

2 comentários:

  1. também gosto demais deste filme. não sei se você chegou a ler isso naqueles textos do wenders, mas o filme era rodado de dia e de noite wenders escrevia o roteiro. incrível, não?

    "cinema, aspirina e urubus" lembra um pouco, não acha? to querendo ver o outro filme do marcelo gomes - está em sp agora: “viajo porque preciso, volto porque te amo” - pra ver se mantém as semelhanças.

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  2. é, victor. incrível como filmes feitos sob baixa pressão, baixo orçamento, equipamentos e formas de edição limitados, elencos semi-amadores, assim como parte da equipe técnica, podem surtir tão bem. como este. ou os de cassavetes, rohmer, bresson...

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