Supermemórias, detalhe do site quando filme ainda in progress
Testemunho e Ternura
Supermemórias, de Danilo Carvalho, curta-metragem, Alumbramento Produções, Brasil, 2010
Em parte, o êxito de Supermemórias, ou mesmo o fato de ele constituir um dos filmes mais efetivos produzidos recentemente em/(e sobre) Fortaleza, provêm de uma instância técnica: a brevidade das tomadas feitas em precárias câmeras super-8, com sua característica imagem “pálida”, granulada e ausência de definição ou nitidez.
Elas, já por si, em analogia, semelham as fotos daqueles velhos álbuns de família, pesados, de folhas espessas, de papelão, guarnecidas por páginas de papel manteiga. Álbuns em que cada foto, já amarelecida, guarda mais um valor testemunhal que meramente plástico.
Essa escassez, essa pobreza e brevidade das imagens foi decisiva para a montagem do filme. O que equivale dizer: rompeu com uma série de dispositivos que eram tidos pertos de norma ou lei por quase todos quantos têm realizado filmes recentemente aqui em Fortaleza: os longuíssimos planos-sequências (que, por vezes ligam o nada ao lugar nenhum); o jogo entre foque/desfoque (sugerindo abstrações, tão plásticas quanto por vezes inócuas para a economia geral do filme); a profundidade de campo; o corte seco; as cores alteradas por plug-ins (ou pluguinadas); a quase ausência de trilha sonora, e um certo – inconsciente? – descuido com o ritmo geral da coisa.
Supermemórias é o contrário dessa soma, pretensiosa, de dispositivos. E cativa por sua pobreza.
E notem que essa pobreza – a da tensão breve, a do limite temporal dos planos, por exemplo – também contribuiu para que se buscasse uma banda sonora que procurasse suplementá-la a contento. E foi precisamente o que ocorreu.
Portanto, se a emoção que essas imagens de um passado recente tão obviamente despertam no espectador advêm do ritmo em que estão montadas, e do som que a elas se casam em rara harmonia, é porque há nelas um altíssimo grau de testemunho. E, suplementadas, não nos esqueçamos, por uma notável (e, contudo, bastante despretensiosa) preocupação narrativa, que se fecha em ciclo. E, aqui, sim, se pode divisar melhor as intenções do realizador, para além dos limites da brevidade das tomadas em super-8 ou de outras limitações técnicas da imagem em si.
De um conjunto de azulejos aleatórios e dispersos, soube-se ordenar um painel em que a Fortaleza dos anos 70 e 80 assoma com desenhada lucidez. Recolhendo material em super-8 de fontes e gentes diversas - em especial, sobre a temática dos ritos em família - o realizador e sua equipe tiveram de empreender essencialmente um trabalho de triagem e sintaxe das imagens. Pois o filme, apesar de seu frescor, é todo montado com imagens de arquivo. E imagens suplementadas por sons tão potentes, que dispensam qualquer off mais ortodoxamente narrativo. Lembremos que, em primeira instância, seu diretor é essencialmente um engenheiro de som.
De louvável, Danilo Carvalho, em Supermemórias, apenas lançou mão de um dispositivo simples – e simples quase nunca quer dizer fácil –, mas muito efetivo. Qual? O de inscrever a memória dos tempos recentes de Fortaleza –tomada sobretudo sob o ângulo dos ritos familiares – em seu próprio destino individual e intransferível. Daí que seja adorável o momento em que sem nenhuma nitidez de imagem se ouça a voz de seus pais congratulando-o pelo recém-nascimento da filha.
Quase sempre imagens de um passado recente, por serem tão expressamente o espelho ou contraste mais nítido do presente, despertam uma certa “vergonha”. Um constrangimento diante do desenho [design] das coisas e objetos, da decoração das casas, dos gestos e ritos familiares, do corte dos cabelos, do talhe das roupas, da atitude geral das pessoas, do modo como elas lançam mão de seus tempos de lazer e distensão.
Tudo isso está presente em Supermemórias: o surfista de cabelos longos, parafinados e franja à “menino do Rio”; a bela garota [a “cocota”?] que hesita em enfrentar as ondas na Praia do Meireles, envergando um biquíni estranhamente largo e sem apelo para o tempo presente; as comemorações no âmbito familiar em amplas salas profusamente decoradas com miniaturas e bibelôs; e, sobretudo, nas hilariantes cenas em que dois garotos brincam de bang-bang com revólveres de brinquedo – algo que entra em confronto direto com o tacanho politicamente-correto dos diascorrentes e, simultaneamente, desvela a inocência e o grau de “faz-de-conta” investido na brincadeira em si.
Há no entanto, planos-gerais de grande relevância simbólica para além do âmbito familiar. Como imagens tomadas on-board, do centro da cidade. Ou ainda um plano em que se pode ver a fachada de uma casa sendo posta ao chão. E, aqui, bem se pode imaginar o condomínio que sobre ela, em sequência, foi erguido. A sutileza com que temas feito a especulação imobiliária dizem presente na imagem do filme.
O êxito de Supermemórias reside, assim, nos desmentindo em parte, não nas limitações da imagem, determinantes para a decupagem ou o fluxo de duração dos planos. Porém no hábil modo com que Danilo Carvalho e sua equipe conseguiram lançar mão disso com impressiva eficácia. Uma espécie de fluidez que fala, à boca pequena, aos habitantes de um local – e, portanto, o torna tão universal a ponto de falar aos habitantes de qualquer outro local. Seu valor de testemunho é incomensuravelmente belo. E é esse o mérito capital de Supermemórias.
Ao assisti-lo experimenta-se um deleite análogo ao do adolescente, prestes a pular da velha Ponte Metálica sobre a impetuosidade das ondas. É um mergulho num passado e numa lembrança que nem sempre nos detemos ou nos propomos a fazer. Talvez pelo grau de consciência, dor ou atestado de tempo passado, que isso suscita.
Sem embargo, o único momento em que o filme cede um pouco ao maniqueísmo de uma tese excessivamente pré-concebida, seja no modo de apresentar as paradas militares. Não nas imagens em si. Mas na banda sonora. É tão óbvia as dilaceradoras e nefastas consequências de se viver sob uma ditadura, como nos anos 70, que qualquer tipo de acento maior sobre a coisa, acaba tornando-se um excesso, por espoliar a sutileza da imagem em si. Por exemplo, a inconsciente alegria dos desfiles colegiais, com a baliza adiante da fileira de alunos, brandindo alegremente o bambolê...
Porém, esses são pecadilhos menores dentro de um curta absolutamente encantador. Pois dele se pode dizer que se trata de um filme à altura da pulsão afetiva do colecionador. De nossos grandes colecionadores: de um Nirez, de um Christiano Câmara. Ainda que essa pulsão seja reapropriada sob uma nova perspectiva, um novo ângulo. Em suma, um filme enfeitiçante, acima de tudo, por não trair história e realidade de uma cidade tão pouco habituada a ser traduzida na tela com tamanho grau de testemunho e ternura.
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