Charles B. Kaufmann, Bird Control Strips, 1949
Vai, azulão, azulão, companheiro
O Santo Sujo – A Vida de Jayme Ovalle, por Humberto Werneck. Cosac & Naify. São Paulo, 2008, 400 ps.
Certamente quem lê poesia brasileira alguma vez na vida ouviu falar de Jayme Ovalle. Sempre indiretamente. Os mais atentos talvez hajam, quem sabe, escutado “Azulão” (“Vai, azulão, azulão/ companheiro, vai/ Vai ver minha ingrata [...]”), uma de suas canções com letra de Manuel Bandeira. Canção, aqui, no sentido do Lied. Ou seja, daquele gênero que se encontra a meio-termo entre o erudito e o popular e que foi consagrado por Schubert e Schumann. Aquele gênero em que a letra da canção tem fumos literários.
Com o escritor argentino Macedonio Fernández, Jayme Ovalle divide, além do nome exótico, o fato de haver sido mais famoso como personagem do que como autor. Mais como arte viva, em carne e osso, do que como artista. Mas, sem dúvida, nesse aspecto “personagem”, Ovalle sobrepuja em muito Fernández, que ainda chegou a escrever uma obra copiosíssima se comparada ao modesto output do compositor brasileiro.
E, no entanto, Murilo Mendes, Vinicius de Moraes, Augusto Frederico Schmidt, Fernando Sabino e Otto Lara Resende, entre muitos outros, referem-se a Ovalle com devoção, entusiasmo, prazer e aquela admiração desconfiada que nos induz à insegurança. A insegurança de estar diante de um gênio que simultaneamente é... um fiasco. Ovalle, que assomava brilhante na conversa, era incapaz de pôr essa conversa em prosa ou verso. E mesmo sua produção musical é bem escassa. Mario de Andrade dizia em carta a Manuel Bandeira: “a incapacidade de criação dele é fantástica”. Voltaremos a esta variante mais adiante.
Antes, é preciso dizer que Ovalle, esse músico (e poeta bissextíssimo), boêmio de cepa, era uma das mais espirituosas presenças nas mesas do velho, gentil Rio de Janeiro da época de Noel Rosa, Madame Satã e Manuel Bandeira.
Rosa e Bandeira foram devidamente biografados. Fizeram-se longas de ficção sobre o sambista de Vila Isabel e sobre o marrento travesti da Lapa. Um precioso curta sobre o autor de Estrela da Vida Inteira (O Poeta do Castelo) foi rodado por ninguém menos que Joaquim Pedro de Andrade, que era afilhado do poeta. Mas quase nada tínhamos de Ovalle.
Quer dizer, quase nada mais sistemático. Quase nada para além, claro, das várias, avulsas referências feitas a ele pela fina flor dos modernistas. Afinal, Ovalle é um tipo humano assim: avulso. E justo por passar longe de qualquer possibilidade de classificação. E é dessa avulsividade em que Ovalle veio, lenta e discretamente, debatendo-se, ao longo de décadas, como personagem - nos versos, na prosa e na conversa epistolar dos escritores que amamos - que pesca-se essa bela biografia escrita por Humberto Werneck.
Ovalle era um paraense que enriodejaneirou-se cedo. Mas talvez não tão cedo quanto se insinua, pois, tendo nascido em 1894, chegou ao Rio apenas em 1911. E se cedo ganhou fama de excêntrico, sua excentricidade, no entanto, não se estendia à Alfândega, da qual foi funcionário exemplar. Seguia mais pelas mesas dos botecos da Lapa. Ou, por mesas antípodas, na Princesinha do Mar. Ovalle freqüentou com igual fervor os lupanares do Mangue e os bailes do Copacabana Palace. Por uns e por outros, construiu uma reputação inestimável de conversador ultra-espirituoso, inigualável bon-vivant. E teve namoradas que iam de prostitutas a socialites.
Entre as suas maiores “proezas” amorosas consta a de se haver apaixonado perdidamente por uma pomba que freqüentava o batente de sua janela. Tinha acessos de ciúme. Como se não bastasse seu coração também bateu mais acelerado por um manequim da Rua Gonçalves Dias.
De um catolicismo bastante idiossincrático, Ovalle costumava entoar preces nada ortodoxas: “agradeço-te por mais uma noite de minha vida, bebendo, moderadamente, com soda e gelo, o meu uísque". Dado a diminutivos, seria o tipo ideal do brasileiro que a todos tutua e segue, impávido, adiante, incapaz de fazer inimigos: o próprio homem cordial em estado bruto. Sérgio Buarque, que o conheceu e foi seu amigo, deve tê-lo enxergado um tanto assim. Pelo poder de agregar e bem conviver, Ovalle foi uma espécie de Vinícius de Moraes. Mas sem a obra.
Aliás, Vinícius o chamava de “o místico”. E lhe escreveu uma elegia, “A Última Viagem de Jayme Ovalle”, em que descreve a Morte – naturalmente uma das idéias fixas do irreverente Ovalle – divertindo-se com a verve do boêmio paraense (“Foram por montes e por vales/ E tanto a Morte se aprazia/ Que fosse o mundo só de Ovalles/ E nunca mais ninguém morria [...]"). Antes de escrever o poema, no entanto, Vinícius editou uma rara entrevista com o autor de "Azulão". Nela, Ovalle, entre outras, disserta sobre a criação e a possibilidade de vida em outros planetas: "os outros planetas não são habitados, só a Terra. Todo o resto é luxo, prodigalidade de Deus. É como o carpinteiro que para fazer um móvel deixa se espalhar uma quantidade de pó de serragem. No caso, pó luminoso de astros e estrelas. Deus é um esbanjado. Deus fez muito rascunho. O hipopótamo, por exemplo, é um rascunho de Deus".
Grande era sua capacidade como phrase-maker. Bandeira, que lhe escreveu o “Poema só para Jayme Ovalle”, sentia-se tão à vontade com o amigo, que chegou a lhe confidenciar em carta, a propósito de novas amantes: “tenho fodido muito, que felicidade!”. Mas, por trás de tanto chiste e risadas há alguma chaga. E essa chaga - momento de contemplação quase extática diante de tanto prosaísmo e irreverência - é o que confere aos versos de nossos modernistas – aos de Bandeira, em sua elegante simplicidade - um escape ao barroco mais deslavado de que se compõe nossa cultura.
O mote do poema de Bandeira vem de Ovalle haver ido às lágrimas diante da solidão do poeta de “Canção do Beco” ao entrevê-lo a preparar seu próprio café, de manhã cedo, após uma noitada: o poeta franzino, de meia-idade, sozinho, preparando o seu café (“Quando hoje acordei ainda fazia escuro/[...]/Bebi o café que eu mesmo preparei/ Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando[...]”).
Não só Bandeira ou Vinícius compuseram poemas a partir de “sugestões” de Ovalle ou da espirituosidade de sua presença. Este também é o caso de Dante Milano. Mas as astúcias de Ovalle não se restringiam a inspirar poemas e compor raras pérolas ao piano, ele também foi um fino ironista. Ovalle esboçou um propalado modelo filosófico a que deu o nome de Nova Gnomonia. O modelo causou espécie pelo reductio ad absurdum e delicioso nonsense da coisa toda. A Nova Gnomonia classificava os homens em cinco categorias: exército do Pará, dantas, kernianos, morzalescos e onéssimos. As categorias não eram excludentes. Mas passar de uma para outra implicava traumas.
O exército do Pará é composto por “homenzinhos terríveis que vem do Norte para vencer” no Rio, sanguíneos e ambiciosos; os dantas são “homens de ânimo puro, nobres e desprendidos, indiferentes ao sucesso na vida”; os kernianos, “indivíduos de bom coração [...] mas que se deixam arrastar por um impulso irresistível de cólera”. Os mozarlescos revelam-se pomposos e grandiloqüentes, contudo quase nada dizem ou fazem de facto. Os onéssimos têm um caráter blasée, pouco entusiasmo sentem pelas coisas, vivem mudando de interesse, apesar de reagir com senso de dever diante de situações práticas.
O personagem demandava a biografia. A figura. A joie de vivre que semelha ser uma obra de arte na forma de uma vida. E dá o que pensar essa biografia assinada por Werneck. Pela pesquisa, pelo assunto, pela boa forma de sua escritura. Por tudo isso mais até do que por algumas de suas conclusões.
Como, por exemplo, a já citada incapacidade de Ovalle em traduzir sua imaginação delirante na forma de peças musicais ou de palavra escrita. Aqui, é preciso lembrar que não existe arte sem forma. E desde que Ovalle era incapaz de criar uma forma, ele não era, a rigor, um artista. Ele era isso, sim - e quando muito - uma espécie de “musa”, se se quiser. Arte é tradução, deslocamento. Quem é incapaz de transpor ou deslocar, é incapaz de criar. E, lembre-se, este não era inteiramente o caso de Ovalle. Ele era capaz de compor arte. Só que em doses homeopáticas. E bote homeopáticas nisso se sua produção escassa é comparada à proficuidade de seus camaradas, que, de resto, eram os mais ressonantes escritores, músicos e artistas de seu tempo.
De outra forma, na biografia, Werneck atribui esse bloqueio criativo de Ovalle à sua formação deficiente. E é possível, de fato, que sua formação tenha sido deficiente. Mas é preciso lembrar que alguns de nossos mais finos escritores dessa época, caso de Graciliano Ramos, eram autodidatas, como Ovalle, e sequer passaram por uma faculdade. No caso de Graciliano, isso ainda se torna mais pungente pelo fato de ele só haver se mudado para o Rio compulsoriamente, depois de adulto e com um estilo já definido. É preciso parar, de uma vez por todas, de superestimar o potencial propedêutico da ambiência cultural Rio-Sampa. Isto, no entanto, não é uma crítica que se estenda propriamente a Werneck que, em livro passado, bem soube falar de certa geração de escritores mineiros que vieram sancionar no Rio suas respectivas carreiras.
Á sua feição, o que Ovalle deixou, apesar de pequeno em quantidade, não deixa de ser instigante. Nem tanto seus poemas quanto sua música, que é uma coleção de gemas raras: um poema sinfônico ("Pedro Álvares Cabral") e um belo ciclo de canções, onde se destacam "Modinha" e "Berimbau", entre outras também letradas por Bandeira. Essas obras, por se basearem em temas populares ou rituais, indicaram uma senda a aprofundar a um de seus caros amigos: Heitor Villa-Lobos.
Teses à parte, O Santo Sujo – A Vida de Jayme Ovalle, ricamente ilustrado, é um desses bons livros que passam bem e bem ao largo do universo acadêmico. Livros inteligentes, cheios de transes históricos e bem-temperada delicadeza diante de nossos escritores modernos. Livros que encontram seu patrono em Heródoto, o colecionador de histórias afluentes, refratário à simplória pobreza das explicações e nexos. Em especial se excessivamente tutelados por um sistema de idéias. E isso, num momento em que nossos escritores contemporâneos, ao invés de também interessarem-se por figuras do quilate e da estranheza de um Ovalle – profundamente entranhadas em nossa história – intoxicam-se de Blanchots, Derridas e Deleuzes em traduções duvidosas e só querem saber de debater “éticas levinasianas”, “dobras” e “indecibilidades” em pós-graduações insossas.
- Uns chato-boys! – diria Oswald.
- Uns mozarlescos! – diria Ovalle.
Diriam. Diríamos. Tarde e manhã. Um dia. Azulão, azulão, companheiro...