Henri Rousseau, 1903
Anotei, então, inúmeros chavões. Os verbos, em gerúndios, indeterminando-se. Sínqueses. As expressões que só podem ser ditas, ou só funcionam num contexto de uma transmissão. Cheguei a uma conclusão: quem melhor escreve sobre futebol são argentinos e espanhóis, nesta ordem. Os argentinos passionais até a medula. Um sentido do trágico e da hipérbole, que neles ocorre como respirar. O texto humaniza-se, e fica pleno de humour.
Mas se eles escrevem bem, falamos melhor. E falar vem antes de escrever. Pelo menos acreditava-se nisto até Derrida achar de dizer que inventamos o passado. E isso de inventar o passado já estava em Santo Agostinho de forma mais graciosa, para a angústia de Derrrida e de Bloom e de Ricouer. E de quem mais? Sei lá, quem só fica lendo filosofia em casa é poste. Bom, voltando ao artigo, também esquematizei uma tipologia, à Weber, dos narradores na televisão. Um seria autoritário; o outro, contemporizador. O exemplo do primeiro era Galvão Bueno. O do segundo, Cléber Machado.
Não ilustraria mais assim nem que a vaca. Até porque não suportaria a transmissão. Especialmente a de Bueno.
Mas, Cléber Machado não fica muito atrás. Vem contemporizando tanto que, hoje, chega a ser irritantemente autoritário. Ou seja, chato. Relativo demais. Não há mais nenhum valor, nehum conceito absoluto na pós-mediocridade. E mesmo que você acredite, fique calado. Ou então, fale besteira, como os outros. Todos. Pois se tudo é relativo por que a opinião dos outros tem relevo? Ou então, escreva despoesia para não-leitores. Ah, parnasianismo da gota. O chavão é o mesmo: “cada qual com sua opinião”. Não há nada de muito mais autoral em Cléber Machado -- por razões opostas às de Galvão Bueno. Nada de mais original, incisivo, opinioso. Pois não há mais também conclusão alguma. Ainda que parcial. Antes havia. Revisada, palinódica, se o argumento do outro era melhor. Mas havia.
Já Galvão Bueno é um um caso mais sério. Nele só há conclusões. Sabemos disto há muito tempo. Tratou de grudar sua imagem à seleção – como, antes, já havia feito em relação a Senna. Loteou a seleção entre si et caterva. Bueno quer atribuir tanta infalibilidade à sua transmissão que chega a paroxismos. Por equívoco, narrou todo um primeiro tempo entre duas seleções européias invertendo as escalações. Ele narrava a partir de imagens geradas, e àquela altura não havia Google. Sequer fax. Ele deve ter recebido as escalações por telex. Ou comprado La Gazzetta dello Sport de dois dias antes, numa banca da Av. Atlântica. O fato se deu em um torneio de 74. Alguém, provavelmente um austríaco ou um alemão oriental de passagem pelo Brasilien, percebeu o logro. A emenda chegou a Bueno por telefone, no intervalo do jogo. Mas, claro, ele não quis consertar o soneto. Ao receber a informação de que atribuía, digamos, à Áustria o que era da Alemanha Oriental, Bueno simplesmente desinverteu os nomes dos jogadores para o correto, consultando a escalação impressa. E, sem nenhuma satisfação ao espectador, seguiu com a segunda etapa. Como se nada. E o Fritz virou Walter.
Eram tempos heróicos, e ainda havia Alemanhas Orientais.
Quem sabe do que estou falando, sabe do que estou falando. E pode até lembrar do trecho de Kundera em que ele nos diz de certo enternecimento ao deparar-se com uma foto de Hitler. Não por ser Hitler. Por ser sua juventude, mesmo que ele não quisesse. Ou seja, não desejasse que o verdor dos anos houvesse sido conspurcado pela insanidade do ditador alemão e tudo que dela sobreveio. E, ainda assim, a foto de Hitler - depois de muito tempo sem ser vista - era, querendo ele ou não, um ícone de sua juventude. Viva a sua vida, cara, mesmo quando uma foto de FHC lhe despertar ternura. Senão a vida vem e te vive. E nunca vi rasto de cobra. E se correr é pior.
Pensando bem, não há nada de mais nisso. Quer dizer, na falácia de Bueno. E o episódio todo é até bem divertido. Quer dizer, se fosse avulso. Pois há algo de errado, sim: a recusa em reconhecer o erro uma vez na vida ao longo de tantas transmissões. Ou no fazê-lo com contrariedade, desassossego desmesurados. Supondo que a própria autoridade está tendo prejuízo ou que o espectador, comprando fiado uma vez, vai acabar virando um desconfiado. E, então, Bueno nunca aprendeu a funcionar sem as ironiazinhas torpes, rasas, destiladas contra repórteres, comentaristas ou ainda contra um Arnaldo César Coelho que está sempre na linha de tiro ao modo de um Sancho. Não, de um maninelo mecânico fumando um narguilé. A narração de Bueno Kid pode esgotar a cisterna do prazer mais límpido: ganhar da Argentina com um time inferior.
A vontade de precisão de Bueno – me recuso a usar o familiar ‘Galvão’ para falar de um tipo assim –, sua sede de ser factível, preciso, infalível lembram o papel do 'informador' diante do 'narrador', no ensaio, célebre, de Benjamin ["O Narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov"].
Ah, bordões infames.
E nada de bem amigos.
Life has a practice of living you, if you don't live it.
Philip Larkin
Desistiria de ler jornal. Se fosse possível, desistiria. Mas então não haveria vida. E de retinas tão fatigadas há anos dispensei o Jornal Nacional. A vida é melhor sem ele. Experimente. Até me desinteressei de escrever para jornal depois que fiquei sabendo mais das coisas. De algumas. A vida tem o costume de te viver, se você não a vive.
Agora, ainda assisto – e muito – futebol. Inclusive jogos da seleção. Mas desde a Copa de 98 que a voz de Galvão Bueno não entra aqui em casa. Se a Globo monopoliza a transmissão, retiro o som. De início, ficava incomodado. Só a imagem. Cinema mudo. Mas, como diz Bresson, "o cinema sonoro inventou o silêncio". E, percebi: é uma ótima estratégia para começar a “ler” de novo uma partida. A sentir com maior precisão movimento e gesto. A tática, o lance de dados. E, confesso, até o modo como se faz a direção de imagens. Mas não prescindo do som. Se não se é posto à prova do ridículo por Galvão Bueno, pela Rede Globo.
Gosto de mesas-redondas sobre futebol. Gosto é eufemismo. As favoritas são as da Espn-Brasil. Assisto tanto que, outro dia, ouvi uma menção ao Odorico Leal, escritor aqui de Fortaleza, feita pelo Flávio Gomes. E, se bem me lembro, o Odorico reclamava da imperícia de Dunga para definir a zona de sintonia fina entre o jogador e o espaço a ser ocupado. Não, não era bem isso. Mas acho que o Flávio Gomes não concordou com o comentário. E lembro que a mensagem do Odorico estava cheia de advérbios. E tinha um travo, algo, antigo, como às vezes o texto dele ousa ser.
Discutir futebol está para o Brasil como discutir filosofia para a Alemanha. E, se duvidar, é até mais importante a nossa conversa. E mais saborosa. Pois entre o futebol e a filosofia, é claro que fico com o primeiro. Gosto tanto de futebol, que acredito que seja a única instância da vida brasileira onde a gente se lembra que o país tem memória – uma história lapseada por quadriênios – e ainda alguma via para inteligência e originalidade de pensamento. Via cada vez mais estreita.
Cheguei a escrever um artigo sobre o jargão das transmissões de futebol na televisão. O artigo incluía também algumas considerações sobre a cobertura dos jornais, inclusive estrangeiros, lidos na incipiente internet. Foi em 1998, durante a Copa. Perdi esse artigo antes de publicar, numa dessas reconfigurações da informática vida. Artigo acadêmico, com notas de rodapé, bibliografia, volúveis abnt's, tudo de direito. Acho que em parte estou escrevendo isto porque me lembrei desse artigo e sei que não vou poder recuperá-lo. E que ele me rendeu um trabalho danado. Dias tomando notas diante da tv. Me impedindo de simplesmente assistir os jogos. A gente pode ser tão sério com as coisas.
Philip Larkin
Desistiria de ler jornal. Se fosse possível, desistiria. Mas então não haveria vida. E de retinas tão fatigadas há anos dispensei o Jornal Nacional. A vida é melhor sem ele. Experimente. Até me desinteressei de escrever para jornal depois que fiquei sabendo mais das coisas. De algumas. A vida tem o costume de te viver, se você não a vive.
Agora, ainda assisto – e muito – futebol. Inclusive jogos da seleção. Mas desde a Copa de 98 que a voz de Galvão Bueno não entra aqui em casa. Se a Globo monopoliza a transmissão, retiro o som. De início, ficava incomodado. Só a imagem. Cinema mudo. Mas, como diz Bresson, "o cinema sonoro inventou o silêncio". E, percebi: é uma ótima estratégia para começar a “ler” de novo uma partida. A sentir com maior precisão movimento e gesto. A tática, o lance de dados. E, confesso, até o modo como se faz a direção de imagens. Mas não prescindo do som. Se não se é posto à prova do ridículo por Galvão Bueno, pela Rede Globo.
Gosto de mesas-redondas sobre futebol. Gosto é eufemismo. As favoritas são as da Espn-Brasil. Assisto tanto que, outro dia, ouvi uma menção ao Odorico Leal, escritor aqui de Fortaleza, feita pelo Flávio Gomes. E, se bem me lembro, o Odorico reclamava da imperícia de Dunga para definir a zona de sintonia fina entre o jogador e o espaço a ser ocupado. Não, não era bem isso. Mas acho que o Flávio Gomes não concordou com o comentário. E lembro que a mensagem do Odorico estava cheia de advérbios. E tinha um travo, algo, antigo, como às vezes o texto dele ousa ser.
Discutir futebol está para o Brasil como discutir filosofia para a Alemanha. E, se duvidar, é até mais importante a nossa conversa. E mais saborosa. Pois entre o futebol e a filosofia, é claro que fico com o primeiro. Gosto tanto de futebol, que acredito que seja a única instância da vida brasileira onde a gente se lembra que o país tem memória – uma história lapseada por quadriênios – e ainda alguma via para inteligência e originalidade de pensamento. Via cada vez mais estreita.
Cheguei a escrever um artigo sobre o jargão das transmissões de futebol na televisão. O artigo incluía também algumas considerações sobre a cobertura dos jornais, inclusive estrangeiros, lidos na incipiente internet. Foi em 1998, durante a Copa. Perdi esse artigo antes de publicar, numa dessas reconfigurações da informática vida. Artigo acadêmico, com notas de rodapé, bibliografia, volúveis abnt's, tudo de direito. Acho que em parte estou escrevendo isto porque me lembrei desse artigo e sei que não vou poder recuperá-lo. E que ele me rendeu um trabalho danado. Dias tomando notas diante da tv. Me impedindo de simplesmente assistir os jogos. A gente pode ser tão sério com as coisas.
Anotei, então, inúmeros chavões. Os verbos, em gerúndios, indeterminando-se. Sínqueses. As expressões que só podem ser ditas, ou só funcionam num contexto de uma transmissão. Cheguei a uma conclusão: quem melhor escreve sobre futebol são argentinos e espanhóis, nesta ordem. Os argentinos passionais até a medula. Um sentido do trágico e da hipérbole, que neles ocorre como respirar. O texto humaniza-se, e fica pleno de humour.
Mas se eles escrevem bem, falamos melhor. E falar vem antes de escrever. Pelo menos acreditava-se nisto até Derrida achar de dizer que inventamos o passado. E isso de inventar o passado já estava em Santo Agostinho de forma mais graciosa, para a angústia de Derrrida e de Bloom e de Ricouer. E de quem mais? Sei lá, quem só fica lendo filosofia em casa é poste. Bom, voltando ao artigo, também esquematizei uma tipologia, à Weber, dos narradores na televisão. Um seria autoritário; o outro, contemporizador. O exemplo do primeiro era Galvão Bueno. O do segundo, Cléber Machado.
Não ilustraria mais assim nem que a vaca. Até porque não suportaria a transmissão. Especialmente a de Bueno.
Mas, Cléber Machado não fica muito atrás. Vem contemporizando tanto que, hoje, chega a ser irritantemente autoritário. Ou seja, chato. Relativo demais. Não há mais nenhum valor, nehum conceito absoluto na pós-mediocridade. E mesmo que você acredite, fique calado. Ou então, fale besteira, como os outros. Todos. Pois se tudo é relativo por que a opinião dos outros tem relevo? Ou então, escreva despoesia para não-leitores. Ah, parnasianismo da gota. O chavão é o mesmo: “cada qual com sua opinião”. Não há nada de muito mais autoral em Cléber Machado -- por razões opostas às de Galvão Bueno. Nada de mais original, incisivo, opinioso. Pois não há mais também conclusão alguma. Ainda que parcial. Antes havia. Revisada, palinódica, se o argumento do outro era melhor. Mas havia.
Já Galvão Bueno é um um caso mais sério. Nele só há conclusões. Sabemos disto há muito tempo. Tratou de grudar sua imagem à seleção – como, antes, já havia feito em relação a Senna. Loteou a seleção entre si et caterva. Bueno quer atribuir tanta infalibilidade à sua transmissão que chega a paroxismos. Por equívoco, narrou todo um primeiro tempo entre duas seleções européias invertendo as escalações. Ele narrava a partir de imagens geradas, e àquela altura não havia Google. Sequer fax. Ele deve ter recebido as escalações por telex. Ou comprado La Gazzetta dello Sport de dois dias antes, numa banca da Av. Atlântica. O fato se deu em um torneio de 74. Alguém, provavelmente um austríaco ou um alemão oriental de passagem pelo Brasilien, percebeu o logro. A emenda chegou a Bueno por telefone, no intervalo do jogo. Mas, claro, ele não quis consertar o soneto. Ao receber a informação de que atribuía, digamos, à Áustria o que era da Alemanha Oriental, Bueno simplesmente desinverteu os nomes dos jogadores para o correto, consultando a escalação impressa. E, sem nenhuma satisfação ao espectador, seguiu com a segunda etapa. Como se nada. E o Fritz virou Walter.
Eram tempos heróicos, e ainda havia Alemanhas Orientais.
Quem sabe do que estou falando, sabe do que estou falando. E pode até lembrar do trecho de Kundera em que ele nos diz de certo enternecimento ao deparar-se com uma foto de Hitler. Não por ser Hitler. Por ser sua juventude, mesmo que ele não quisesse. Ou seja, não desejasse que o verdor dos anos houvesse sido conspurcado pela insanidade do ditador alemão e tudo que dela sobreveio. E, ainda assim, a foto de Hitler - depois de muito tempo sem ser vista - era, querendo ele ou não, um ícone de sua juventude. Viva a sua vida, cara, mesmo quando uma foto de FHC lhe despertar ternura. Senão a vida vem e te vive. E nunca vi rasto de cobra. E se correr é pior.
Pensando bem, não há nada de mais nisso. Quer dizer, na falácia de Bueno. E o episódio todo é até bem divertido. Quer dizer, se fosse avulso. Pois há algo de errado, sim: a recusa em reconhecer o erro uma vez na vida ao longo de tantas transmissões. Ou no fazê-lo com contrariedade, desassossego desmesurados. Supondo que a própria autoridade está tendo prejuízo ou que o espectador, comprando fiado uma vez, vai acabar virando um desconfiado. E, então, Bueno nunca aprendeu a funcionar sem as ironiazinhas torpes, rasas, destiladas contra repórteres, comentaristas ou ainda contra um Arnaldo César Coelho que está sempre na linha de tiro ao modo de um Sancho. Não, de um maninelo mecânico fumando um narguilé. A narração de Bueno Kid pode esgotar a cisterna do prazer mais límpido: ganhar da Argentina com um time inferior.
A vontade de precisão de Bueno – me recuso a usar o familiar ‘Galvão’ para falar de um tipo assim –, sua sede de ser factível, preciso, infalível lembram o papel do 'informador' diante do 'narrador', no ensaio, célebre, de Benjamin ["O Narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov"].
Ah, bordões infames.
E nada de bem amigos.